Sunday, November 14, 2004

Chuva

Eu admirava a chuva.
Não admiro o sol, gosto do sol.
Admiração só pela chuva. Toda janela chuvosa é uma rodoviária. Como se fosse necessário acenar para os pássaros. Como se soubesse os pássaros pelo nome. A chuva torna minha rua uma cama de palha, chapéu sentado na mesa, fruteira encolhida. Com reverência, observava a obsessão das calhas abrindo as pedras, furando as pedras com a lâmina da queda.
O lápis do relâmpago escrevia nas telhas mensagens psicografadas do musgo, do orvalho, dos liquens. Tremia o som. Um dia depois da torrente, recolhia no pátio os prendedores de madeira do varal. Sugava a água da madeira de cada prendedor, a água da chuva na madeira. Água com barro, como rio que se engole na hora de mergulhar. Água de poço mais do que balde. Água avoada, cicatrizada. Água de horta, de folha escorrendo como luz. Água de respirar.
Não carecia de pudor de provar o escuro, invocar o inferno, adoecer com um paninho molhado na testa. E minha mãe ficava assustada pelo meu modo de pegar o pátio pela boca, de mexer na terra a toda hora, de tomar um prendedor com os cuidados de um cacto. Assustada de água.
Se comia de menos no almoço, ela dizia que eram vermes. Se eu comia demais no almoço, ela dizia que eram vermes. Até hoje, já adulto, me recomenda tomar um remédio para vermes. Escrevo demais e deve ser resultado de vermes. Amo demais e deve ser resultado de vermes. Esqueço demais e deve ser obra dos vermes.
Pouco, muito, bastante, raso, não importava a quantidade da ração, sempre alimentava estranhos em mim. Não dormia na sesta com medo de alguma erupção definitiva da pele. Não tive jardim, mas terreno baldio. O terreno baldio, na verdade, é um jardim. Um jardim alegre, com árvores nascidas aos socos da semente, a partir de caroços jogados como lixo e que cresceram como livro da saliva. O abandono também jardina.
Passava horas circulando no desleixo trincado de capim e aves, com um canivete herdado do avô. Fiz arco e flecha e não entendia como a gravidade não me ajudava a voar acima do telhado.
Se a boca tem joelhos, andavam esfolados. Amaciava o rude, o crispado, fazia oca de mata, fogueira de gravetos. Uma lata de Nescau terminava enegrecida como pneu de tanto requentar a sopa de folhas. Fui meu convidado e meu hóspede na infância. Não deixei de abrir a porta aos vermes. Esses vermes, coração emprestado, coração que não enxergo para morrer ...

(texto enviado pela Lú)

3 comments:

Amita said...

Excelente este texto. Bjos

Anonymous said...

Peter.. Obrigada!!
Linda a música de fundo..
bjs..

Peter said...

Como vês Lú,o teu texto fez sucesso.