Friday, January 21, 2005

Escrevias pela noite fora

Escrevias pela noite fora. Olhava-te, olhava
o que ia ficando nas pausas entre cada
sorriso. Por ti mudei a razão das coisas,
faz de conta que não sei as coisas que não queres
que saiba, acabei por te pensar com crianças
à volta. Agora há prédios onde havia
laranjeiras e romãs no chão e as palavras
nem o sabem dizer, apenas apontam a rua
que foi comum, o quarto estreito. Um livro
é suficiente neste passeio. Quando não escreves
estás a ler e ao lado das árvores o silêncio
é maior. Decerto te digo o que penso
baixando a cabeça e tu respondes sempre
com a cabeça inclinada e o fumo suspenso
no ar. As verdades nunca se disseram. Queria
prender-te, tornar a perder-te, achar-te
assim por acaso no meu dia livre a meio
da semana. Mantêm-se as causas iguais
das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina
dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono
custa. Porque estou contigo e me deixas
a tua imagem passa pelas noites sem sono,
está aqui a cadeira em que te sentaste
a escrever lendo. Pudesse eu propor-te
vida menos igual, outras iguais obrigações.
Havias de rir, sair à rua, comprar o jornal.

(Hélder Moura Pereira)

«A poesia de Helder Moura Pereira tem origem num idioma muito mais cultivado nalguma poesia inglesa e americana do que na poesia portuguesa. Aquilo que a distingue é uma certa forma de austeridade que facilmente poderá ser confundida com banalidade. Uma tal confusão omite, no entanto, o que há nela de coerente desinflação do poético e de capacidade de integração de elementos e processos prosaicos, afastando-se, porém, muito mais do discurso da prosa do que parece, já que o ritmo métrico do verso comanda toda a dicção. Digamos mesmo que um dos desafios que esta poesia coloca ao leitor é o reconhecimento das subtilezas que colaboram na economia e na tensão próprias do verso. É exactamente por causa deste aspecto ténue do verso, avesso a todo o lirismo expressivo e às correspondentes elevações retóricas, que se torna difícil citar parcialmente um poema de Hélder Moura Pereira sem o diminuir: ele é uma totalidade muito dificilmente desmembrável. Trata-se de uma poesia que tende a colocar o leitor à distância, desde logo porque multiplica os processos de distanciamento em relação a si própria: insinua muito mais do que afirma e, sobretudo, (...) é imoderadamente irónica (também a ironia não é uma característica muito comum na poesia portuguesa).»

António Guerreiro, Expresso.


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