Friday, December 02, 2005

Adeus


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sol das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

(Eugénio de Andrade – 1987)

5 comments:

Maria said...

Quando já não há nada para dar é tempo de virar a página. Quando se pode. Quando ainda se vai a tempo. Quando se tem a coragem.
Beijos e bom fim de semana.

Anonymous said...

Que boa Poesia se encontra por aqui. Beijinhos.

Peter said...

"quando se pode", como eu costumo dizer, quando ainda não se atingiu "the point of no return". A "coragem" acaba por se arranjar, mas contra o "tempo" é que nada podemos fazer.
Bom fds

Su said...

ainda bem q passei por aqui, pois amo este poema o Adeus de EA
beloooo
jocas maradas

Amita said...

Um dos mais belos poemas de E.A. que se lê e relê com ternura e saudade. Um bjo desta tua amiga ausente-presente na correria do tempo.