Sunday, November 14, 2004

Nossa Senhora de Burka

vi nossa senhora bater-me à porta
apanhou-me de surpresa
julguei que era a porteira àquela hora da manhã
eu estava de robe e de chinelos chineses
a escrever versos que me doem tanto
já pensei até deitá-los fora atirá-los todos para o mar
vê-los navegar fazer deles caravelas como antigamente
iam por aí
sabe-se lá aportar onde
mas àquela hora quem me apareceu foi nossa senhora de burka
fiquei espantada que havia de dizer
perguntei-lhe se queria entrar delicadamente
eu estava a escrever versos para fora da gaveta
com palavras bravas e escandalosas
ela disse que sim que vinha para ficar
andava à procura do filho que perdera
há mais de dois mil anos
posso muito bem compreender a dor humana
sei o que isso é
não tenho é paciência para trocar sorrisos
o que também era indiferente

fiquei muito perturbada deixei-a entrar
arranjei-lhe um chá quente de cidreira
para a acalmar sentei-a no sofá da sala
pedi-lhe para nunca mais falarmos disso
ela acenou com a cabeça e nunca mais
trocámos uma palavra vi-a beber água
desapareceu para meu espanto do aposento
hoje não sei se ela era realmente
a nossa senhora de burka
se eu e ela não somos a mesma
sei que nunca mais tirámos a máscara
nunca mais fui dar aulas
fiquei ali sentada
continuei a escrever versos a noite inteira
para fora da gaveta

hoje chamam-me mary
e foi-me preciso matar

(Maria Azenha)



5 comments:

Maria Azenha said...

Peter,vou inclui-lo nos meus links.


bjs.

bom fim de semana.

Peter said...

Obrigado.Procurarei corresponder.

Anonymous said...

peter, poema belíssimo da mary. todos os dias "nos-é" preciso matar... martaoutra

Anonymous said...

Lindo Peter...
Fiquei encantada..
bjs

Peter said...

Lú, a Maria Azenha, que escreve sob vários pseudónimos, é uma óptima poetisa, cujos livros se esgotam rapidamente.