Friday, May 20, 2005

Como eu não possuo




Olho em volta de mim. Todos possuem -
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtase da cor que eu fremiria,
Mas a minh'alma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei ... perco-me todo ...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse - ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...

Castrado de alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo ...
- Seria um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?

***

Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil. tão agreste, tão de amor ...
Como eu quisera emaranhá-la nua,
Bebê-la em espasmos de harmonia e cor!...

Desejo errado ... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim - ó ânsia! - eu a teria...

Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo de êxtases dourados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante ...

De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo;
É que eu teria só, sentido e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo.

(Mário de Sá-Carneiro)

3 comments:

Amita said...

Interessante desabafo/lamento do Mário de Sá Carneiro. Bjo

Peter said...

Obrigado Amita pela tua visita. Muito possivelmente passarei a dedicar mais tempo ao meu blog.

Amita said...

Olá Peter, Já não fazia visitas há tanto tempo que reli este belíssimo poema. Desculpa a ausência. Retomo a vida, lentamente. Bjos e continua em frente